Embora os sintomas físicos, mentais e espirituais da doença alcoolismo e outras dependências químicas sejam muito semelhantes para todos os enfermos, o tratamento para cada um pode ser bem diferente. Uma unanimidade entre médicos, psicólogos, terapeutas, e mesmo entre os doentes é de que não há uma receita para o bolo. Para cada um há um caminho diferente, respostas diferentes, enfim. Mas alguns ingredientes são, em maior ou menor quantidade, fundamentais para uma vida em recuperação segura e feliz.
Pode-se até ficar sóbrio ou limpo, sem beber ou usar, mas viver sofrendo não deveria ser uma escolha. Nem para si, nem para os outros. Sim, para os outros também. E não apenas para os familiares ou colegas de trabalho que terão de conviver com uma pessoa incomodada ou incômoda, mas também para os que ainda estão buscando a recuperação. Não se pode esquecer que um alcoolista ou adicto em recuperação é um “exemplo” para aqueles que almejam um plano para se ver livres do álcool ou outras drogas. E um testemunho de vida livre, serena e feliz é fundamental para que eles se propõem a deixar suas alegrias ilusórias em detrimento de uma felicidade autêntica.
Há ingredientes secretos nesse bolo. Um exemplo é a tríade “Honestidade, Humildade e Mente Aberta”. Mas eles podem ser descobertos e vivenciados seguindo e dosando elementos bem práticos, muitas vezes bem conhecidos e que possivelmente já foram propostos. Podem, muitos, ter experimentado alguns deles ou até feito algumas misturas… mas o que vemos na prática é que somente em uma espécie de combo entre todos eles é que se encontra a paz para viver em sobriedade de forma serena. Vamos a esses ingredientes:
1. Espiritualidade
Viver a espiritualidade não significa ter uma vida religiosa. Você não precisa necessariamente ir à missas, cultos ou cerimônias, não precisa seguir normas, doutrinas ou dogmas se não for sua escolha. Pode mesmo ser ateu, mas ainda assim, ter uma espiritualidade firmada. A maioria dos que entram em recuperação de forma sadia, usa o ingrediente secreto chamado “Disciplina” e, até para ficar mais fácil, adota ou aceita uma religião para seguir. Pode-se dizer que sem espiritualidade não há recuperação para esse tipo de doença. Até 1935, quando teve início a irmandade de Alcoólicos Anônimos, cujo programa é basicamente espiritual, não havia esperança para quem caísse nas garras do álcool ou de outras drogas. A espiritualidade do programa de AA mudou essa realidade.
Pode-se seguir olhando com sarcasmo para as crenças e práticas espirituais. Não há problema nisso. Mas por que fazê-lo se percebe-se que os sóbrios felizes estão utilizando esse ingrediente, muitos como item principal de suas receitas? Nem tudo são flores em uma vida espiritualizada ou dentro das congregações religiosas. Mas por que não apreciar a beleza do jardim ao focar a atenção apenas nas ervas daninhas que há nele? No fundo, com um certo exame de consciência, com uma certa dose de experiência, não é preciso muito esforço para se perceber que, diante dessa doença, apenas um milagre de um Poder Superior pode colocar o enfermo em um caminho de sanidade. Lembrando aqui do ingrediente secreto “Humildade”, é interessante se perguntar: “quem sou eu para dizer que Deus não existe?”
2. Conhecimento
Há um conceito de fé que diz: “ter fé é dar um passo no escuro e acreditar que Deus colocará o chão”. Isso é muito importante? É, mas… qual é o momento de dar esse passo? Em que direção? Qual o tamanho do passo? Qual é a energia que usará para dá-lo? Está preparado para tal feito? Isso tudo depende do livre arbítrio de quem colocará o pé no escuro. O bom é que esses e outros “mistérios” ficam muito mais claros quando se busca conhecimento. Estar lendo este artigo já demonstra interesse por esse ingrediente. Mas há muito mais em outros lugares e métodos.
Pode-se encontrar colheres, xícaras, quilos desse item na literatura de Alcoólicos Anônimos (AA) ou Narcóticos Anônimos (NA), por exemplo. Entrar em contato com pessoas sóbrias e felizes, ler artigos como este, interessar-se por documentários sérios sobre alcoolismo ou outras dependências químicas… tudo é válido. Buscar saber mais sobre a doença, sobre as formas com que outros conseguiram entrar nos trilhos da sanidade é muito importante. Poder-se-ia dizer que é vital.
3. Medicina
Não há como negar que a medicina psiquiátrica evoluiu muito nas últimas décadas, e segue evoluindo. Embora a maioria dos psiquiatras sérios geralmente encaminhe seus pacientes para uma sala de AA ou NA e, por conseguinte para um programa espiritual, na maioria das vezes, para se ter condições de entender e viver experiências como essas também recomenda, pelo menos no início do processo, medicações que estabilizem o doente. Agarrar o joystick da vida sem ter o mínimo de lucidez para saber usá-lo com sensatez é, no mínimo, insano. E uma das ajudas combater a insanidade é o uso de medicação farmacológica.
Não há vergonha alguma em buscar ajuda nesse caso. É, isto posto, um indício claro de que a pessoa está disposta a melhorar. A opinião de um profissional médico é importante e deve ser ponderada. Não há remédio fármaco para alcoolismo e/ou adicção, isso é sabido. Mas é um elemento importante na recuperação. Um outro ingrediente secreto salta aos olhos nesse momento: Mente Aberta.
4. Mútua ajuda
A ajuda recebida e ofertada em grupos de mútua ajuda como AA e NA é importante. Sim, isso já foi dito centenas de vezes para cada alcoolista e/ou adicto que clamou por auxílio. Alguns muitos até tentaram ter uma frequência em salas, mas nunca conseguiram entrar em recuperação de fato. Mas como foi dito lá no início deste artigo, a sobriedade firme e serena depende de um combo. A vivência em grupos é apenas um dos itens. E pode-se dizer com certeza de que nem todo mundo que frequenta reuniões e está sóbrio/limpo decide juntar todos esses ingredientes na sua receita. O resultado é que temos pessoas em sala que são incomodadas, irritadas, há anos ainda lutando contra seus defeitos de caráter… ou seja, que não estão totalmente felizes em sua recuperação.
Mas é bom que se faça uma ressalva: “incomodadas”, como dito acima, é diferente de “incômodas”. Nos grupos (e mesmo fora deles) há aquela pessoa que diz a verdade que o outro não quer ouvir… e aqui entra um outro ingrediente secreto chamado “Honestidade”, nesse caso, principalmente aquela que se deve ter consigo mesmo. Para que opor-se tanto à ida a grupos? Pode-se escolher qual se sente melhor e muitas vezes até dias e horários. Saber receber ajuda e, mais, estar disposto a ajudar se não com palavras ou testemunho, pelo menos com sua presença, é mais um ingrediente secreto, o “Altruísmo”.
Além do mais, alcoolistas e adictos costumam, com a devida paciência no início, gostar da frequência a reuniões com o passar do tempo. É como está na literatura de AA, chega um momento que o grupo se torna um lugar prazeroso, como ir a um clube social. Basta se dar a chance de experimentar as reuniões com serenidade.
5. Mentores
Arrogância, prepotência e autossuficiência fazem parte da doença. Mas também fazem parte dela o terror, a instabilidade e o medo. Nesse cenário, a presença de pessoas centradas e de confiança para as quais se pode recorrer sempre ou mesmo eventualmente é um conselho mais do que justo e sensato. Irmandades como AA e NA mencionam em suas literaturas e práticas a presença e importância de um padrinho ou madrinha. Mas sejamos realistas: a grande maioria não consegue encontrar uma pessoa assim. Na verdade, o alcoolista/adicto que tem a bênção de ter um anjo em sua vida deve sentir-se bem-aventurado. O que geralmente ocorre é que várias pessoas acabam por preencher papeis importantes em determinadas questões do cotidiano, dependendo da natureza da dificuldade.
Nesse caso, há só uma ressalva que também está na literatura de AA como prática recorrente: “o risco de ter vários padrinhos está em uma tendência que cultivamos quando bebíamos (…) a fim de protegermo-nos da crítica, contávamos diversas histórias a diferentes pessoas (…) a fim de termos tolerância pelos nossos defeitos de caráter ou bebedeiras. (…) É possível que não tivéssemos consciência disso (…) mas fazia parte de nossa personalidade de bêbado”. Então, nada há mais a dizer de que, tendo real e sincero desejo de parar de beber ou usar, é preciso ter um alerta muito forte quanto à honestidade.
6. Responsabilidade
Parar de beber e/ou usar drogas é uma coisa, entrar em recuperação é outra. Nesse ponto ercebe-se outra tríade muito usada terapeuticamente: “é necessário parar de beber/usar, não ter mais vontade de beber/usar e encontrar uma nova maneira de viver”. Além dos cuidados físicos, mentais e espirituais para evitar uma recaída, o alcoolista/adicto tem suas responsabilidades familiares, comunitárias e sociais. A vida continua. O mundo não para porque ele parou de beber/usar. A família (mesmo que adoecida, fragmentada ou mesmo separada) demanda cuidados e assistência. Há também que se ter um trabalho, há que se ser útil para a sociedade e para si mesmo.
Nesse tema, duas questões devem ser observadas: a presença ou colaboração para com a família (ou construção de uma) e a independência financeira. A primeira depende de mudanças mentais e comportamentais. Isso vem com o tempo, esforço e paciência. Pode-se solicitar auxílio para mentores, medicina, grupos, espiritualidade… enfim, para todos os outros ingredientes desse combo. Já a segunda, a busca por seu próprio sustento e de uma atividade útil, é decisão que deve ser tomada desde o início. Responsabilidade não é item negociável na recuperação plena. Há que se encontrar forças para ser uma pessoa melhor e estar firme para se manter com suas próprias forças.
7. Autoestima
Também poderia ser considerado um item da Responsabilidade, mas o caso é que autoestima depende de muitos fatores. Premissa para eles é ter consciência de que autoestima não significa autossuficiência ou ego inflado. Ao contrário, com o tempo se percebe que há muito mais do ingrediente secreto “Humildade” na autoestima do que se pode imaginar. Fato é que ser uma pessoa asseada (física e mentalmente) é deveras importante para a recuperação.
Lembrando que o asseio e melhora de aparência deve ser tanto físico como mental. Cuidar da aparência é importante, mas de nada adianta se não for dada a devida atenção para a limpeza mental. Outra tríade bastante usada, “evitar hábitos, lugares e pessoas da ativa”… é o básico. Buscar uma nova vida, com novos gostos, novas ideias, novos sonhos… isso é o que impulsiona uma nova maneira de viver. Na prática: novas músicas, novos ambientes e novos projetos. Isso tende a levar ao futuro, pois ele pode não chegar após a próxima recaída.
8. Viver um Programa
Por último dessa lista básica de ingredientes, vem a cereja do bolo: é preciso ter um programa de vida. E objetivos, propósitos, sonho, caminhos para se chegar a eles. Isso é extremamente necessário. É preciso que se saiba onde está, onde se quer chegar e, principalmente, saber os meios e o rumo a seguir. Tendo bastante atenção à lista acima, já é possível se ter uma boa ideia de por onde começar. A jornada é individual, mas pode-se (deve-se) ter companhia na caminhada de mudanças. Para mudar de vida é preciso mais do que decisão.
É necessário muita “Mente Aberta” para aceitar uma vida espiritual e entregá-la a um Poder Superior. É fundamental fazer um inventário moral, saber claramente onde acertou e onde errou até aqui, o que demanda honestidade. É essencial limpar sua mente e alma colocando essas verdades para si mesmo, para seu Deus e para pelo menos outro ser humano, e isso exige coragem. É indispensável fazer uma lista das pessoas a quem se tenha prejudicado e reparar os danos causados com humildade. E é imprescindível seguir vivendo assim, por meio da prece e da meditação, saber da vontade do seu Poder Superior, rogando apenas forças para realizar essa vontade com serenidade. Esses são apenas alguns modos de preparo básico desse bolo que são encontrados, por exemplo, em um caderno de receitas espirituais que contém os 12 Passos de AA e NA.
Bom apetite! A recuperação firme, serena, feliz… a nova maneira de viver está saindo do forno!
João Henrique Machado
Jornalista, consultor em Dependência Química
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