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O castelo de vidro e o poder do nocaute




Na literatura de Alcoólicos Anônimos (AA), e por consequência na de todas as irmandades paralelas, o primeiro passo diz “Admitimos que éramos impotentes perante o álcool e que tínhamos perdido o domínio sobre nossas vidas”. Muito já foi escrito e dito sobre isso, sobre a importância de admitir também a questão do domínio da vida… mas pouco se fala da admissão da derrota completa, ou seja, do nocaute. Lá no Livro Azul de AA, fica explicado de várias formas que “O princípio de que não encontraremos qualquer força duradoura sem que antes admitamos a derrota completa, é a raiz principal da qual germinou e floresceu nossa Irmandade toda”. E nesse ponto é que se tem de ter muito cuidado. Fazer o primeiro passo de forma perfeita é crucial para a sobriedade sólida. E é muito fácil achar que se está nocauteado quando caído na lona, quando perdeu tudo. É bem comum achar, mesmo que não admita conscientemente, que conseguirá lutar mais um round contra a substância.

A mente adicta é assim mesmo. Ela entende, admite, acredita… mas nem mesmo aos prantos em uma clínica, em um hospital psiquiátrico, em uma comunidade terapêutica, ela encara a derrota completa. É aí que mora o perigo. Desintoxica-se, entra-se em abstinência, a estima melhora e a vida começa a dar certo. Isso até o dia em que, mesmo depois de negar várias vezes a tentação, mesmo até depois de não ter mais tentação, se pega com o copo na mão. E aí é questão de tempo. É questão de cair, levantar, cair, levantar… incansavelmente até que um dia, por vezes mesmo depois de muitos anos, chega a consciência do nocaute. Também está lá no Livro Azul de AA: “Uma vez que aceitamos este fato, nossa falência como seres humanos está completa”. E somente então a recuperação passa a funcionar verdadeiramente.


O filme “O Castelo de Vidro” (The Glass Castle, Estados Unidos; 2017. Paris Filmes) é baseado na história real da família da jornalista Jeannette Walls. O pai, alcoolista e ídolo da menina, passa a vida levando sua mulher e filhas de um mundo de caos para outro. Só ele acredita (e busca a fazer com que todos familiares acreditem) que construirão um castelo de vidro para morarem à margem de uma “sociedade hipócrita e sem sentido” na opinião dele. É uma história de medo e sofrimento travestidos em vida aventureira. É essa ilusão bem fundamentada que muitos dos que não conseguem dar o primeiro passo de AA com consistência vivem em suas vidas em “recuperação”. Quando não se consegue compreender a verdade nua e crua de que sempre serão nocauteados pela substância aditiva, inevitavelmente se viverá em meio ao caos, por mais que pareça a coisa certa a se fazer.


O primeiro passo, na opinião de centenas de alcoolistas que encontram-se em salas de AA, deve ser renovado a cada dia. E toda vez deve ser fortalecido, repensado, atualizado. Como um GPS corrigindo a rota conforme o mundo vai girando. Ficar preso à ideia de que um dia o castelo estará pronto para ser habitado leva a uma vida de dor e tristeza, não só do dependente químico, mas de toda sua família. Admitir que se vive o caos, que o mundo gira e que, além de corrigir rotas, é apenas o começo, o primeiro passo, mas sem ele, a sobriedade, física e emocional, não existirá.



João Henrique Machado

Jornalista, consultor em Dependência Química


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1 Comment


Guest
Aug 22, 2023

Parabéns pelas sábias palavras....Vivendo um dia após o outro, na busca incessante, não de uma vida perfeita na plenitude, mas ao menos de sobriedade.

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