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Felicidade é uma questão de foco e de treinamento


Há vários anos frequento reuniões de Alcoólicos Anônimos, clínicas, hospitais, comunidades terapêuticas... e tenho contato com centenas de alcoolistas e dependentes químicos também de outras drogas em recuperação. Com isso, a gente vai acumulando frases, ensinamentos, sentimentos que só quem tem a doença e vive constantemente em tratamento tem para contar. Um amigo que trabalhava em uma clínica para tratamento da dependência química certa vez me disse que viver em recuperação é como dirigir à noite em uma rua vazia. Se for virar uma esquina, é preciso ligar o pisca-alerta mesmo que não tenha ninguém por perto, que precisamos ser precavidos, pois o caminho é longo e os faróis só te mostram alguns metros adiante. É aquilo de se viver um dia de cada vez e com responsabilidade.

Sim, para viver em recuperação é preciso disciplina. Fazer a coisa certa na hora certa. Estar sempre atento, mas em paz consigo mesmo. E é justamente a disciplina, a correção dos passos e a busca pela minimização dos defeitos de caráter que propiciam a serenidade da caminhada. Outro conhecido resume a recuperação comparando-a como andar de bicicleta em uma viga de madeira distante a menos de um metro do chão. Não dá para parar de pedalar, senão a gente cai. Viver em recuperação é um exercício diário, diria constante. Não há espaço para uma escapadinha. Não há espaço para autopiedade, para manipulação.

O primeiro gole é fatal. É como muitos dizem em forma de bordão: uma dose é demais e 30 não são o suficiente. Um outro consultor, amigo de longa data, compara o primeiro gole a ser atropelado por um trem. Ele dizia “a locomotiva é que mata, o restante dos vagões que passam por cima só aumentam o estrago”. Certa vez também ouvi em uma reunião alguém dizer “sou uma coisa errada que está dando certo”. Não acredito que ser dependente químico seja errado. É uma doença como outra qualquer. É certo que carrega estigma social maior do que outras, que tem dimensões físicas, emocionais e espirituais, que não tem cura e é progressiva e fatal.

Mas é possível que ser um dependente químico em recuperação tenha suas vantagens. São pessoas abençoadas por ter a oportunidade (na verdade, a necessidade) de, vivendo em recuperação, olhar para dentro de si e melhorar a cada dia. Em recuperação pode-se evoluir como seres humanos e, sim, dar certo. A recuperação não exige pessoas inteligentes. Exige pessoas obedientes. Gente séria, comprometida com seu propósito de viver em paz sem o álcool ou outras drogas, de “viver e deixar viver”, outro bordão. Ouvi também um depoimento de um veterano que dizia se sentir uma ameaça aos que não bebem: “eles olham para mim e percebem que é possível ser feliz sem beber!”, comentava.

E também ouvi de uma pessoa internada, que para ser feliz em recuperação é preciso de treino: “precisamos treinar ser feliz. A cada dia vamos percebendo que a felicidade passa a fazer parte de nossas vidas, vamos aprendendo e se torna um hábito”. É parece ser isso mesmo. Mesmo nos momentos difíceis, confusos, ansiosos, preocupantes ou mesmo naqueles dias em que o tempo parece parado, que nada acontece, é preciso treinar ser feliz. Acreditar que se é feliz. Fazer coisas de pessoas felizes. Aí, com o tempo, aprende-se a viver uma vida mais alegre e com momentos plenos.


Para encerrar, cito outro alcoolista que em um depoimento comentava que estava em sobriedade há muitas 24 horas, mas seguia frequentando reuniões de A.A. Ele alertava: “isso aqui não é um cursinho que tem início, meio o fim. Não há diploma. É para sempre. E quem contesta, geralmente paga um preço muito caro”.



João Henrique Machado

Jornalista, consultor em Dependência Química


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