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Estranhos no ninho: conectando-se com o mundo


Estranhos no ninho - Alcoolismo e dependência química

Mesmo em recuperação há alguns anos, muitos alcoolistas e adictos de outras drogas ainda se sentem como na fase ativa da doença em alguns aspectos, principalmente o social. Não se pode dizer que são como estranhos no ninho, mas é como se percebem os companheiros de enfermidade que, por um motivo ou outro, não conseguem trabalhar a si próprios para enfrentar com certa tranquilidade o mundo real. De fato, ao conhecer os primeiros momentos de sobriedade após algum tempo de abstinência, deparam com um sistema social completamente diferente daquele que viviam em tempos ébrios.


E o mais chato disso tudo é que qualquer criança parece entender os conceitos e regras, o que é sensato, as consequências de certos atos ou palavras… enquanto o dependente químico chacoalha a cabeça como se a certificar-se que está realmente lúcido. Parece exagero, mas se levarmos em consideração a quantidade de mancadas que são dadas nos primeiros tempos sóbrios, fica parecendo que essas pessoas não têm habilidades humanas básicas. Sabem do potencial que têm para adquiri-las ou recuperá-las. E rogam por sabedoria para tanto (como o fazem no 11º passo de A.A.: "Procuramos, através da prece e da meditação, melhorar nosso contato consciente com Deus, na forma em que O concebíamos, rogando apenas o conhecimento de Sua vontade em relação a nós, e forças para realizar essa vontade").


Perceber que estão conectados a um sistema complexo (de dependentes químicos ou não), cheio de pontos de ligação - uma verdadeira teia com multiconexões - já assusta um pouco. Ficam ainda mais surpresos ao saber que são solicitados a participar. Agora suas opiniões importam. Suas ações são solicitadas (afinal, ninguém quer um peso extra na teia que não ajude a construí-la constantemente). Mas o quê e como fazer? Sentem-se como garotinhos aprendendo a andar de bicicleta. Para conseguir se equilibrar nessa nova forma de locomoção, descobrem que precisam pedalar mais rápido e virar o guidão na direção a qual a bicicleta está caindo. Exatamente o contrário do que sabiam desde que aprenderam a caminhar, diminuindo a velocidade e se inclinando no sentido contrário ao da queda. Sim. Por algum tempo, tudo é tão diferente. Até que passam a desenvolver a nova habilidade, o que alguns estudiosos chamam de inteligência sistêmica. Ela é que lhes permite trabalhar o autoconhecimento, a autogestão, o reconhecimento dos sentimentos e necessidades dos outros e a busca de serenidade nas tomadas de decisão. Pois são essas tomadas de decisão, os caminhos a escolher, as palavras a usar que costumam atormentar um alcoólico/adicto consciente de sua recuperação.

É comum que não se entenda alguns delays da vida. Por exemplo, alguém pode ser franco demais com um dependente químico em recuperação, ou ignorar quando acha que deve ser considerado, ou até mesmo ser rude. Em um primeiro momento, o indivíduo em recuperação não entende tais atitudes. Ocorre que geralmente não volta ao passado com empatia a fim de compreender tais atitudes. Muitas das vezes, em épocas anteriores, tinha agido de forma pior com essas pessoas. Pode ser que nem se lembre, mas é bem mais possível que não tenha capacidade de olhar para suas atitudes do passado com os olhos e os sentimentos do outro. Se assim o fizer, creio que muitas das “injustiças” que sofreu agora têm explicações bem plausíveis.

Pois bem, e como agir ao descobrir isso? Uma das formas é buscar o programa de 12 passos de Alcoólicos Anônimos. Por meio dele, percebe-se que no oitavo passo ("Fizemos uma relação de todas as pessoas a quem tínhamos prejudicado e dispusemo-nos a reparar os danos a elas causados") pode-se trabalhar essas descobertas relacionando as pessoas a quem tinham prejudicado e, mais importante, dispor-se a fazer alguma forma de reparação. E isso começa justamente com a preocupação empática com tais pessoas. Mais além, o nono passo ("Fizemos reparações diretas dos danos causados a tais pessoas, sempre que possível, salvo quando fazê-las significasse prejudicá-las ou a outrem") convida a fazer essas reparações. Começa-se a viver com mais leveza.

Avançando um pouco mais, o 10º passo ("Continuamos fazendo o inventário pessoal e quando estávamos errados, nós o admitíamos prontamente") pede que continuem a pensar sobre seus atos e a admitir prontamente no caso de estarem errados. Então, além de reconhecer os delays e entender as relações de causa e efeito, com o tempo adquirem a habilidade de descobrir antecipadamente onde surgem consequências involuntárias. Ou seja, passam a agir com mais sensibilidade prospectando os efeitos de suas atitudes e palavras nos outros. Tornam-se mais sensatos, mais mansos, mais criativos até. Isso faz parte da serenidade.

Podem continuar na tentativa de “demarcar território”, de defender suas opiniões até a morte e até utilizá-la para machucar quem não concorda. Ou podem fazer aflorar em si a compreensão da consciência coletiva, na qual se sabe que o mundo, a sociedade, as suas famílias e até eles mesmos não são exatamente o que pensam, mas o resultado de milhares de outras opiniões - deles é apenas uma, mas a mais importante. Não por ser a melhor (isso não estão em questão), mas por ser a que melhor e a que mais facilmente podem modificar. Quando compreendem isso, passam a enfrentar questões desafiadoras com mais humildade e sabedoria. A recuperação depende disso.


João Henrique Machado

Jornalista, consultor em Dependência Química


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