“A Jornada do Herói” é resultado de uma análise profunda feita pelo pesquisador Joseph John Campbell em dezenas de relatos culturais, mitos, lendas, fábulas e outras histórias contadas por povos do mundo todo. Publicada em 1949 no livro “O Herói das Mil Faces”, a tese tinha 17 etapas, Elas foram adaptadas em 12 partes pelo escritor Christopher Vogler, em sua obra “A Jornada do Escritor” como um roteiro perfeito para se contar uma história de sucesso. Mas o que isso tem a ver com recuperação de alcoolismo ou de outra dependência química?
Bom, a jornada passou a ser estudada pela Psicologia e Neurociência e hoje é uma ferramenta para profissionais entenderem seus pacientes. Que tal se observarmos essas etapas como parte do trabalho de recuperação de dependentes químicos? Entender a fase de sua doença pode ser uma ferramenta para a melhora e até um caminho para trilhar, sabendo que há possibilidade de uma caminhada com êxito em busca da sobriedade.
Vamos às etapas:
O mundo comum – A jornada começa em um ambiente normal, um cotidiano comum. Tudo parece normal na vida de um dependente químico. Ele não bebeu ou usou drogas.
O chamado - Mas seja por questões genéticas, por acontecimentos traumáticos, por a família ser ou se tornar disfuncional ou mesmo por estar em companhias não-saudáveis, nosso herói é confrontado por um conflito. Ele conhece a sensação do primeiro gole ou dose. Isso o tira de sua vida normal. Ele passa por uma crise que o obriga a sair de sua zona de conforto. É necessário encarar um desafio, nesse caso, a renúncia à substância ou ao conflito (mesmo que seja sua família, se o caso for de família disfuncional).
A recusa – O ser humano foge da ideia de mudança, apesar do desconforto que, no início talvez não se mostre tão preocupante. Geralmente é a fase com que o dependente químico, no caso, busca pela fuga da realidade ou culpa outros ou alguma coisa pelo incômodo pelo qual está passando. O herói pode até ter consciência de que algo tem de ser mudado, mas não se sente apto ou acha que consegue viver com tal desconforto.
O mentor – Uma pessoa ou instituição surge e dá ao herói uma mostra de que a mudança é possível. Pode ser um conselho, um exemplo, um depoimento… algo importante que o instiga a agir, a buscar uma solução. No caso da dependência química, pode ser um amigo, um familiar, um religioso, um membro de AA ou NA que mostra o programa de 12 passos. Pode ainda ser que a “coisa” que seja dada seja a oportunidade de uma internação em uma comunidade terapêutica, por exemplo.
A travessia do primeiro limiar – É o momento no qual o herói decide dar um passo em direção ao desconhecido. Ele reconhece que há uma jornada que deve seguir e que não há mágica nem medicamento que resolva… ele precisa agir. Pode ser que ele busque solução convivendo mais com um amigo, conversando com um terapeuta, ingressando em um grupo de mútua ajuda ou mesmo encarando uma internação.
Provas, aliados e inimigos – Agora o herói já está com o pé na estrada. A jornada começa realmente e começam a surgir os desafios e ele tem de superar todos eles. Alguns são apenas contratempos ou obstáculos, como picuinhas que sempre surgem tanto na vida cotidiana de um dependente químico vivendo na sociedade quanto mais na daquele que está recluso em uma internação. É nesse momento em que são testadas suas competências para saber quais as circunstâncias em que deve usar de menos ou mais empenho e quais as pessoas ou ferramentas que pode utilizar para superar maiores ou menores desafios. É nessa etapa em que é necessária atenção para o desenvolvimento de competências.
Aproximação da caverna secreta – É nesse momento em que surgem as grandes dúvidas, inquietações e medos. O questionamento interior é imperioso aqui. O herói precisa olhar para dentro de si, observar os conflitos internos e descobrir de onde precisa tirar forças para continuar. É um momento de preparação, de conhecer o máximo a si mesmo… mas de forma real. Nesse momento, caso o dependente químico não esteja estabilizado o suficiente, a figura do mentor deve ser buscada. Lembrando que esse mentor pode ser desde uma pessoa, como o terapeuta, quanto a literatura de AA, por exemplo. É um momento de encarar suas crenças limitantes, incertezas ou medos. Para isso, a pausa é necessária.
A provação – É o momento em que o herói deve deixar para trás sua antiga visão de mundo e de si mesmo. É uma especie de morte e posterior ressurreição. Ele não pode mais viver conforme as crenças limitantes que tinha e lembrar de toda as ferramentas que conquistou até esse ponto da jornada. Ele passará por testes de extrema dificuldade, pois é quando se dá por conta de como sua percepção de mundo e de viver estava errada. No caso de um dependente químico, é um momento de superar a culpa, a frustração e a tristeza em função dos momentos e oportunidades perdidas antes da jornada. Seja qual for a provação, precisa ser enfrentada para que a transformação pela qual está passando tenha algum significado. O herói sabe que na sua nova vida nada mais será da mesma forma, nem mesmo da forma que vivia na primeira etapa. O mundo comum não volta mais.
A recompensa – O herói consegue vencer a batalha com todos os desafios que o provaram. Ele passa a ser outra pessoa, com mais conhecimento de si mesmo e maturidade suficiente para iniciar o retorno. No caso da dependência química, a prudência é diária. Admissão, honestidade, humildade e boa vontade devem estar sempre presentes na mente aberta do herói. Agora ele já está com o objeto de busca, a sobriedade em mãos. Precisa manter esse tesouro conquistado no seu alforje e protegê-lo a qualquer custo. É hora de regressar.
O caminho de volta – O trabalho ainda não acabou. Se estiver internado, o dependente químico ainda estará na instituição. O herói voltou ao mundo normal em sua mente e precisa encarar um último desafio, pelo menos para completar essa jornada de busca, encontro e libertação. Nesse ponto ele tem de escolher um chamado maior, um objetivo claro e honrado para seguir vivendo. Essa escolha, ou definição, é fundamental para se manter a sobriedade.
A ressurreição – É o último grande desafio da jornada do herói. Ele encara um grande obstáculo: saber que mudou e que sua mudança vai afetar a vida de outras pessoas. Será uma pessoa de sucesso e motivará o sucesso de outras pessoas. O dependente químico precisa responder um chamado maior: o de deixar uma marca positiva em outras pessoas. É mais ou menos o que significa o 12º passo de AA, que incita a levar a mensagem para o doente que ainda sofre.
O retorno com o tesouro – O herói encarou todos os desafios da jornada e sabe que sua vida mudou para sempre. Agora ele traz consigo um tesouro a ser compartilhado com todos ao seu redor. No caso do dependente químico, invariavelmente o tesouro maior para os outros é a própria sobriedade que demonstrará nos seus relacionamentos.
João Henrique Machado
Jornalista, consultor em Dependência Química
Todos os textos deste site são livres para reprodução desde que citada a fonte e autoria.
Comments