Tempos atrás, ouvi sobre a fábula dos porcos-espinhos. Conta-se que durante a era glacial, muitos animais morriam por causa do frio. Os porcos-espinhos, percebendo a situação, resolveram se juntar em grupos, assim aqueciam-se mutuamente. Mas os espinhos de cada um feriam os companheiros mais próximos, justamente os que ofereciam calor. Decidiram se afastar uns dos outros e morreram congelados. Foi então precisaram fazer uma escolha: ou desapareceriam da Terra ou aceitavam os espinhos dos companheiros. Com, imagino, sabedoria, decidiram voltar a ficar juntos. Aprenderam assim a conviver com as pequenas feridas que a relação muito próxima podia causar, já que o mais importante era o calor do outro. E assim sobreviveram.
Muito dessa fábula pode ser aplicada a Alcoólicos Anônimos. Como em qualquer outra irmandade, apesar do apoio e compaixão mútuos, há diferenças. Mas há a 12ª Tradição que lembra veementemente: “devemos colocar os princípios acima das personalidades, que devemos realmente conduzir-nos com genuína humildade”. Dia desses, um companheiro com 35 anos de sobriedade comentava durante um intervalo de reunião que há muitos AAs que ainda se ressentem com alguns depoimentos. E trocam de grupo uma, duas, três vezes e desistem de frequentar reuniões. O resultado invariavelmente é a recaída.
_ Alcoolista é tudo igual. As histórias se repetem. Apenas o que nos difere são os defeitos de caráter. Há quem deva trabalhar o orgulho, quem precisa se preocupar mais com a ira, e assim por diante. Mas não adianta trocar de grupo e, pior ainda, achar que pode trilhar o caminho da recuperação sozinho. O que acho, na verdade, é que esses companheiros nunca deram sinceramente o 1º Passo, admitindo serem impotentes perante o álcool e que tinham perdido o domínio sobre suas vidas _ dizia o velho companheiro.
Se frequentamos A.A., é porque aceitamos a 3ª Tradição (“Para ser membro de A.A., o único requisito é o desejo de parar de beber”). Se trabalhamos diariamente o 1º Passo, com o tempo os espinhos dos companheiros vão se tornando suportáveis. E muitas vezes as agulhadas servem para nos alertar sobre nossos próprios defeitos de caráter. Talvez aquele ranço esquecido e que decidimos que não iríamos mexer nele. Recuperação de verdade significa não deixarmos reservas para trás. Se quisermos viver realmente uma recuperação serena é importante que tenhamos coragem para modificar aquilo nossas imperfeições assim que as detectamos.
E dessa forma, vamos ficando cada vez mais confortáveis nesse aglomerado de porcos-espinhos, nos regozijando cada vez mais com a irmandade e nos preocupando cada vez menos com os pequenos ferimentos dos espinhos dos outros. Sempre lembrando que também temos espinhos e que eventualmente também incomodamos alguém.
João Henrique Machado Jornalista, consultor em Dependência Química
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